sexta-feira, 18 de julho de 2008

Crônicas que Gostaria de ter Escrito...


Devemos beber desta água suja?

O telefone preto tocou. Era o Nelson Rodrigues. Ele me liga de sua nuvem de algodão, num céu crivado de estrelas de purpurina. Nelson se manifesta sempre nas crises - minhas e do país.

- Nelson, que bom que você ligou... estava precisando. O Brasil está um labirinto de escândalos.

- Ora, rapaz, o país sempre foi assim. Só mudou uma coisa: antes, a consciência social dos brasileiros era medo da polícia; agora, eles perderam o medo... Eu sou do tempo do ladrão de galinha, quando só tinha 3 ou 4 bandidos no país... ah... bons tempos... O Zé da Ilha, o Mineirinho, até os apelidos eram mais doces. Havia uma vaga simpatia pelos vagabundos. Hoje não; quem faz sucesso são os ladrões de casaca... Eles entram na churrascaria e são olhados com admiração. "Olha lá o gatuno!" - o executivo diz, comendo uma picanha. E o outro responde, trêmulo de inveja: "É ladrão, mas dá nó em pingo d" água! Dizem que ele tem até Picassos na cozinha..." E as santas esposas suspiram ao lado, pensando nas jóias que ganhariam deles... E ainda se viram para o marido e lhe atiram na cara: "Você não é honesto não; você é burro!!" Elas têm razão. Falta de caráter facilita a vida. Ninguém mais é honesto. A honestidade é uma úlcera que devora as entranhas como uma víbora do Butantã...

- Mas, não entendo... Nelson..os caras já têm bilhões. O Nahas já derrubou as bolsas, quebrou o mercado de prata no mundo! E querem mais?

- Rapaz, roubar é um vício secreto; no ladrão de galinha e nas grandes jogadas, vive-se a doce embriaguez da adrenalina, feito lança-perfume no Bola Preta.
- E os caras nem se escondem mais na sueter... saem de cabeça erguida..
- Claro! Ser preso faz parte do jogo. Quem ia conhecer seus feitos sem a prisão? Eles se orgulham. É um cheque-mate ao contrário, uma vitória ao avesso. A lei no país é um bálsamo. Eles se exibem feito Clark Gables, Gregory Pecks, com sorriso de pasta de dentes... se orgulham... No meu tempo, o canalha se escondia envergonhado pelos cantos ou então se ocultava atrás da "pose"... Ahhh..como era importante a "pose". A habilidade do grande ladrão era aparentar... Mesmo com um "jabá" ali, quentinho, no bolso, a pose era imprescindível. O larápio antigo tinha perfil de medalha, sorrisos concialiatórios, oportunismo disfarçado de tolerância democrática. Havia a doce volúpia de prometer e não cumprir, de trair de cara limpa. Todos fingiam a tranquila solidez de bons estadistas ou empresários.
O povo babava na gravata e berrava, dando rutilas patadas: "Digam o que disserem - ele rouba, mas faz". E faziam mesmo, quase nada, mas faziam. O povo deixava-se roubar, boquiaberto e devoto. Hoje, os viadutos morrem no ar, as placas de obras dormem no meio das caatingas. Antes, os rapineiros tinham um estranho amor pelo país que pilhavam... Sentiam-se no direito da "mão grande"... Eles se sentiam parte da tradição nacional, misturados com as florestas, com as cachoeiras... Havia uma simbiose consentida entre eles e o povo. Eles acreditavam que eram bons para o Brasil. Na mentira, o essencial é o auto-engano. Ahhh, que saudades do Lupion, do Ademar, do buraco do Lume, tantos... Roubar era uma arte, rapaz...
- Hoje é um esporte ?
- Rapaz, hoje o roubo é em girândolas (desculpe a frase) mas hoje não há autores, há cúmplices; todos são cúmplices. Antes, fulano roubava sicrano ou beltrano. Hoje, cada bandalheira se espalha como uma trepadeira de chuchus, é um jogo-da-velha com mil buracos, uma firma sai de dentro da outra, como cartola de mágico, cada ladrão tem sete cabeças, de sete cabeças saem outras sete e nunca se consegue matar a hidra. Ninguém entende nada. O povão treme dentro da própria boçalidade: afinal quem roubou quem? Ninguém entende. O não entendimento faz parte da estratégia... Pois o próprio Lula não falou que "podem investigar, que o povo nem sabe o que é dossier"? É um caso sério, rapaz....
- E como condenar alguém se todo mundo mente?
- Ninguém está mais faltando com a verdade... Isso é coisa antiga... O canalha de hoje não tem respeito nem pela mentira. Antes, o sujeito roubava e fugia para o mato. Hoje, foge para o Congresso. Você viu os deputados do mensalão? Todos querem acabar com o "foro privilegiado" e cair na justiça comum, porque sabem que lá mora a liberdade dos infinitos habeas corpus... Por exemplo, o grande erro daquele Cacciola foi fugir. Se ficasse aqui, não lhe aconteceria nada... Agora, vai ser caçado como uma ratazana grávida... prá servir de "exemplo". Mas a grande novidade na gatunagem contemporânea é o ladrão com justa causa. Existem vigaristas que dizem, de peito enfunado e testa alta: "Eu roubo porque não vou deixar aí essa grana para pagar o FMI!" E também temos os bandidos ideológicos: "Não é roubo não...", - afirmam trata-se de "desapropriação" dos capitalistas!." Você viu outro dia a comemoração dos pelegos sindicalistas no Congresso, felizes, tudo de gravata, com uísque trinta anos, ameaçando jornalistas? A ideologia absolve e justifica os ratoneiros. "Não tem nada demais pegar mais 100 milhões por ano e não prestar contas ao TCU..." - afirmam trata-se da vitória dos sindicatos sobre os burgueses que exploram o povo, pois, como dizia Lenin: os fins justificam os meios..." É assim... Antigamente, o comuna verdadeiro, o legítimo, o escocês, tinha orgulho da própria miséria. Andava esmulambado pelos cantos, filando ponta de cigarro. Neste novo governo, surgiu o desfalque em nome de Marx... que aliás está uma fera com o PT aqui em cima...

- E que vai ser de nós, Nelson?

- Isso tudo é muito bom. Está se rompendo a úlcera do país, a apendicite supurada vai furar... O Código Penal já está desmoralizado, há juízes jovens e implacáveis, a PF parece Swat de filme americano. É bom... O Brasil está assumindo a própria lepra, a própria miséria moral. E essa coisa torta, mentirosa, vagabunda é a nossa verdade. Você não quer saber qual é a verdade? É isso. Os brasileiros deviam se abaixar no meio-fio e beber desta água suja. Ela é a nossa salvação.

- Nelson... você sempre me traz esperança...

- Deus te abençõe...

(Arnaldo Jabor)


Jornal O Estado de São Paulo 14 de julho de 2008

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